domingo, 22 de dezembro de 2013

Cais

Andando pelo cais em mais um de meus passeios vespertinos, reparei mais uma vez naquela moça que estava sempre ali, com aquele vestido preto esfarrapado e o cabelo grisalho. Minha curiosidade sobre aquela senhora aumentava a cada dia, e dessa vez não me contive e fui a seu encontro. Ela estava sentada em um dos antigos bancos de madeira que davam vista para a beira do cais. Pedi licença, me sentei ao seu lado e resolvi falar.
- Com licença, senhora, mas gostaria de perguntar-te uma coisa. – Assisti enquanto ela desviava seu foco do mar ao meu rosto e, com uma expressão de surpresa, assentia. – Bom, acontece que em todos os meus passeios a esse parque, que costumam ocorrer semanalmente, eu vejo a senhora sentada aqui, usando esse mesmo vestido e sempre olhando para o mar. Venho aqui há mais de quinze anos, quando ainda era uma menina. Isso despertou bastante a minha curiosidade. O que a senhora tanto procura nesse mar?
- Bom, minha jovem, tudo o que posso dizer é que procuro um amor. Um amor já nomeado, com endereço, idade e características físicas já definidas. Nós nos conhecemos pelas ruas desta cidade, em uma bela manhã de primavera. Vivemos muitos momentos felizes juntos, e finalmente nos casamos. Vinte anos atrás, no entanto, ele foi chamado para trabalhar com alguns amigos e, como precisávamos de dinheiro, ele partiu mar adentro com a promessa de voltar. A partir desse dia, venho ao cais todas as tardes, usando sempre esse vestido, para que ele me reconheça e não me confunda com ninguém. Olho para o mar pedindo que meu amor retorne logo a meus braços, para que possamos continuar nossa vida juntos, exatamente de onde paramos. Minha esperança é inacabável, e meu amor é infinito.
- Ora, mas a senhora é louca.

- Se não se importa, prefiro o termo apaixonada.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Mariposas

O que seria de nós se, finalmente, conseguíssemos todas as coisas que desejamos? Talvez o melhor seja mesmo ficar apenas na vontade, na expectativa, na esperança. As mariposas, por exemplo, passam um tempo de suas vidas tentando chegar a uma luz e, quando finalmente chegam a ela, morrem. Assim, simplesmente. Alcançam seus objetivos para quê? Como aproveitar a conquista? Temos esse costume muito ruim e, várias vezes, imperceptível. Passamos a vida toda atrás de uma coisa, de uma ideia, de um produto, de um sonho e, ao alcançá-los, não sabemos o que fazer com eles. Nos acostumamos a viver em prol de uma meta, e quando essa meta é alcançada, não sabemos como prosseguir. Percebemos que, por muito tempo, apenas existimos aleatoriamente e, de repente, não temos mais um propósito. O que fazer depois de alcançar tal objetivo que tanto queríamos? Como viver sem uma meta? O que aconteceu nesse período de tempo no qual nos dedicamos a um projeto que… Acabou? Simples assim, sem mais. Acabou e nos deixou sem outras opções do que fazer. A não ser, é claro, nos render à morte. Como boas mariposas que somos.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Memórias

Relendo um diário antigo, lembrei de você. Quantas bobagens e besteiras já não fiz por você, para chamar sua atenção, não é mesmo? Peço perdão, pois hoje enxergo o quão estúpida sempre fui. Talvez ainda seja estúpida, é verdade, mas prometi a mim que nunca mais adularia a você nem a ninguém. Na verdade, minha experiência contigo foi fonte de muito aprendizado, apesar de tudo. Cada erro cometido é hoje enxergado com muita clareza. Agora entendo o porquê de nada ter acontecido entre nós. Enxergo seus motivos, suas razões, seus incentivos. Percebo o quão boba fui de achar que, só porque eu era inteiramente sua, só porque dedicava cada minuto do meu dia a você, você deveria retribuir. Como se esse amor devesse ser obrigatoriamente recíproco… Refletindo sobre tudo aquilo que já aconteceu, percebo que, não importa a circunstância, eu sempre estarei disposta a te acolher. Meu amor por ti não vai morrer assim, a qualquer momento. É grande demais, apesar de, nesse momento, estar escondido e guardado. No tempo certo, ele vai aparecer de novo, me fazendo sentir saudades e arrependimento por meu modo de agir. Só posso garantir que, a qualquer momento, em qualquer lugar, estarei pronta para ser de novo aquela menininha que um dia escreveu em um diário sobre você, sobre o quão bonitinho você era.

domingo, 22 de setembro de 2013

Lembranças

Jullie estava em um momento simples, comum. Estava apenas tomando seu café diário e, por sempre estar preocupada, estudando para a prova que teria alguns dias depois daquele. Estava concentrada, compenetrada no livro à sua frente e na xícara de café já frio ao seu lado. Foi quando algumas daquelas palavras chamou sua atenção. Olhou para os lados ansiosa, procurando a origem da voz que a distraiu, e finalmente conseguiu enxergar uma menina muito bonita, de uns catorze anos, com lágrimas escorrendo dos olhos, tão azuis que ela podia ver do outro lado da cafeteria, encarando fixamente o tampo da mesa, enquanto um menino bastante charmoso, aparentemente seu irmão, a abraçava. Ela contava a ele sobre seu mais recente amor, que a havia deixado por uma qualquer. O menino, que aparentava um ou dois anos a mais que a menina, tinha em seus olhos castanhos uma expressão de raiva acompanhada de compaixão. Percebia-se facilmente que aquela que estava em seus braços era seu maior tesouro. Jullie largou a página de seu livro que ainda segurava e, por um momento, lembrou-se de uma de suas decepções amorosas. A que menos tinha durado mas, mesmo assim, havia deixado marcas inapagáveis. Lembrou-se do quanto sofreu por um moleque do qual ela nem mais possuía o telefone. Naquela época isso parecia tão grande! Tão impossível de ser curado… Teve vontade de caminhar até a garota e contar a ela sua história. Explicar a ela que hoje - com seus vinte anos e sua vida tão ocupada e preenchida com a faculdade de jornalismo, o estágio em uma grande rede de jornais e a ONG da qual era voluntária no tempo livre - o máximo que ela sentia daquela época em que sofreu por um moleque era nostalgia. Sim, nostalgia até mesmo da tristeza, pois aquele era um sentimento nobre. Só ficam tristes aqueles que se entregam. Ainda escutando a conversa do casal, observou-os atentamente. Sorriu enquanto o menino enxugava as lágrimas da menina, pois viu o olhar do mesmo. Percebeu que o menino, na verdade, não era irmão da menina frágil em seus braços. Seu curso de interpretação de expressão corporal, feito ao mesmo tempo que tantos outros apenas para ocupar sua cabeça na época em que sofria por um moleque, a ajudou naquele momento a decifrar o amor escondido que havia naquele menino. E Jullie então percebeu que aquele casal tinha um longo futuro pela frente, e que o menino cuidaria muito bem do tesouro que tinha nos braços. Recolheu suas coisas, levantou, dirigiu-se até o caixa e, no caminho, sorriu para o menino que a fitava curioso. Ela pagou sua conta e foi embora, certa de que aquela menina um dia estaria tão bem quanto ela estava naquele momento.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Ficção

“-Hey! Não podes ir embora. Simplesmente não tens a autorização para cometer tal ato de tamanho desrespeito às consequências. Tens alguma ideia de que consequências sejam essas? Dor, meu querido, dor intensa e profunda. Sabes mais do que qualquer um que sou apenas uma menina em busca da tão falada felicidade. Sabes que me iludo com histórias fictícias de personagens imaginários, e que imagino com facilidade minha vida como uma dessas. Sabes que meu maior refúgio são palavras pertencentes a outras mentes que, impressas em um conjunto de páginas, me levam a um mundo de paz. Sabes que sonho em um dia ter chances de transportar minha própria história para um livro de contos que um dia servirá de refúgio para tantas outras que - assim como eu - precisam de um mundo criado para poderem se sentir bem. Sabes de tudo isso, e mesmo assim estás indo. Como ousa destruir assim o futuro? Um futuro que, além de ser nosso, seria também compartilhado com tantas almas necessitadas? Estás destruindo a chance de um aprendizado para tantas e tantas meninas ingênuas e ansiosas. Querido, isso é quase homicídio.
- E o que queres que eu faça, pequena? Que esqueça tudo aquilo que tanto nos feriu? Que eu desista do meu orgulho para que possa ter a ti como unicamente minha? Queres que eu faça com que tua vida se transforme em um desses livros de romance que tanto gostas de ler? Queres que eu seja o príncipe que procuras desde que ficou sabendo da existência, mesmo literal, dessa espécie? Queres que eu construa contigo uma história com - não apenas o final - mas um conteúdo feliz? Pequena, é isso que queres? Porque é uma ideia louca, simplesmente louca.

- Parece uma boa ideia para mim.”

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Reflexo

Se levantou do chão e caminhou em passos longos e lentos até o espelho mais próximo. Jogou todo o seu peso em seus braços, apoiando-se na pia em frente ao espelho, e parou para observar à figura que encontrava à sua frente. Via um rosto familiar, porém distorcido. A pele, normalmente branca, estava rosada. O verde escuro de seus olhos estava praticamente imperceptível em meio a todo aquele vermelho encharcado que o envolvia. Uma cachoeira de fios emaranhados caía em mechas bagunçadas por todos os lados, abaixo da altura de seus seios, passando e grudando em algumas partes molhadas do rosto cansado. Seu lábio inferior estava branco, quase invisível, de tão apertado pelo conjunto de dentes retos. O outro lábio tremia incessavelmente, acompanhando os movimentos de seu nariz. Seus cílios estavam encharcados e suas sobrancelhas, bagunçadas. Respirou fundo e então percebeu que se aquela era a imagem que passava quando estava destruída, era melhor não passar imagem nenhuma. Jogou uma água no rosto, estampou um sorriso e saiu andando, como se nada tivesse acontecido.

sábado, 22 de junho de 2013

Porta

De uns dias pra cá, venho pensando em como tudo mudou. Como tudo ficou tão diferente e de como eu gosto de como as coisas estão. É como se minha realidade ao seu lado se afastasse cada dia mais de mim. E, honestamente, gostei disso. Gostei de perceber que não tenho mais a dependência de você que eu costumava ter a tanto tempo. Senti-me bem ao notar que vivo de maneira maravilhosa sem você ao meu lado. É como se eu tivesse, por um momento, trancado a minha vida para você. Como se eu tivesse juntado todas as minhas forças e finalmente dito “não” a você. Um não forte e permanente. Mas ah, eu sei muito bem que isso é apenas uma impressão. Infelizmente, por mais que eu negue para mim e para todos os que perguntam, há um pedaço de mim – um muito grande, na verdade – que clama por você a cada oportunidade. Eu sei que se, em um momento de fraqueza ou solidão, você viesse a mim, essa porta se abriria com uma facilidade impressionante, como se estivesse aberta durante todo esse tempo. Afinal, eu não posso negar, de jeito nenhum, que sempre estive e sempre estarei disposta a ser teu porto-seguro, se necessário. Afinal, já me submeti a isso tantas vezes. O que me espanta, pois deveria ser errado e não parece nem um pouco errado no geral, é a facilidade com a qual eu abriria essa porta. Acho que, na verdade, você é a pessoa que tem a chave mestra. Independentemente de quantas vezes eu troque a fechadura, ou da dimensão da força que eu use para bater a porta, você sempre será bem-vindo aqui, nessa muralha que é protegida por uma simples porta de madeira, desgastada de tanto abre e fecha.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Contra-regra

Se for mesmo para pensarmos na vida como um teatro, então tenho algumas colocações a fazer. Em que tipo de teatro é esse no qual estamos vivendo? Onde certos personagens se mantêm em cena durante todo o tempo de duração da peça, não deixando nem uma brecha para que outros participantes façam sua performance? Onde eu me encaixo nessa grande peça? Gosto de pensar que cada ato requer de mim uma função. Como eu sei há muito tempo, estabilidade nunca foi meu forte, e eu não conseguiria exercer apenas uma função num espetáculo tão longo. Não sou diretora, por mais que eu queira, pois sei que, infelizmente, são poucos aqueles que se deixariam em minhas mãos para serem dirigidos. Também não sou figurinista ou maquiadora. Essas funções, apesar de muito importantes, não se encaixam em minhas habilidades. Plateia? Ah, essa eu nunca fui. Essa função nunca seria bem exercida por mim. Não tenho capacidade de sentar e assistir, sem fazer de tudo para interferir em tudo o que se passa. Posso dizer, talvez, que eu seja uma assistente de palco, em alguns atos. Ajudando a todos os atores que têm a necessidade de uma mão amiga, de alguém sussurrando as falas esquecidas. Existe a possibilidade também de eu ter sido, por algumas cenas, uma entre todos os figurantes. Passando e observando, fazendo meu dever e não sendo reconhecida. Arriscar-me-ia até em dizer que já fui autora. Afinal, minhas decisões já mudaram, e sempre mudarão, o curso dos fatos e acontecimentos. Minha função predominante, no entanto, é de personagem secundário. Isso mesmo, infelizmente, eu ainda não tive o direito de protagonizar uma história. Sempre fui a melhor amiga, a conselheira, a ajudante. E isso me frustra, na verdade. Mas afinal, o que posso fazer? Não sou diretora, e meus direitos de autora terminam a certo ponto, e têm certos limites. Não posso simplesmente mudar o foco da história. Então, enquanto sou uma personagem secundária, fico apenas esperando meu spin-off, onde eu possa, finalmente, mostrar meu lado da história.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Socorro

Deitou em sua cama e pensou. Fazia isso todas as noites, e facilmente pegava no sono. Naquela noite específica, no entanto, ela não dormiria tão facilmente. Aquele dia, além de cansativo, havia trazido a ela várias memórias boas, que acarretaram em pensamentos ruins. Se sentiatão mal, que nem conseguiria expressar aquilo a alguém. E, pior de tudo, ela não via motivos para se sentir mal àquele ponto. Chateada, talvez, mas não tão para baixo do jeito que estava. E sabia que se comentasse seu descontentamento com alguém, receberia apenas desinteresse de volta. Ela estava preocupada consigo mesma, e sabia que era a única nessa posição.
Não posso culpá-la ou dizer que estava errada. Eu mesma me situo em sua posição várias vezes. Acontece que eu a entendo. Entendo seu medo de solidão, acompanhado de um sentimento de estar sozinha o tempo todo. Entendo sua falta de lágrimas, e entendo o quanto isso a incomoda. Não me sinto no direito de julgá-la, não mesmo. Afinal, ela está certa. Porque confiar algo tão importante como seus sentimentos a qualquer outra pessoa? Pessoas sempre machucam, certo? É o que eu tantas vezes fui obrigada a aprender. Melhores amigos. Melhores amigos somem e se tornam colegas, melhores amigos somem e passam a desgostar de você, melhores amigos somem e continuam sendo chamados de melhores amigos, mesmo que suas atitudes não correspondam a tal título. Mas não são apenas os amigos os culpados, são? Nunca são. São também aqueles idiotas que por tantas vezes nos machucam, os tais dos interesses. Interesses de todos os tipos. Materiais, emocionais, físicos. Paixões? Paixões sorriem e quebram nossos corações, paixões choram e quebram nossos corações. Paixões, só de existirem quebram nossos corações. Sonhos? Ah, o que seria de nós sem eles? Eu acredito, honestamente, que estaríamos melhor sem eles. Sonhos existem apenas para serem destruídos ou esquecidos com o tempo. Ideias. Essas servem apenas para nos iludir e nos dar a esperança de que tudo pode um dia melhorar. Calma, calma, eu sei que a lista é grande, mas vale a pena entender antes de pensar em desistir, certo? Temos ainda os colegas. Colegas tais que um dia se transformam em amigos. Como podemos esperar que nos entendam, quando não estão em nossas posições? Como podemos esperar que lidem com nossos problemas quando nem mesmo nós conseguimos? Como podemos esperar que nos aguentem, quando nós mesmos temos, por diversas vezes, a vontade de mudar de vida, de personalidade?
Mas eu sei, e ela sabe também, que o sofrimento um dia tem que acabar. Pode até ser que algumas pessoas vivam em um conto de fadas, mas conosco nunca foi assim. Mesmo não estando em uma história encantada, nós também não vivemos em um filme de terror.

Então vamos, sozinhas, caminhando. Pelo menos enquanto ninguém muda nossa opinião, e nos mostra o melhor do mundo.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Devaneio

Ela estacionou seu Volvo na garagem da imensa casa, pegou os sapatos de salto com as mãos, pois eles machucavam muito seus pés, e adentrou aquele espaço que há quinze anos chamava de lar. Foi até a cozinha, largando os sapatos e o casaco pela sala de estar, e tomou um copo de suco. Dirigiu-se então até o banheiro do andar de baixo, para não acordar àqueles que tanto amava com o barulho da água enchendo a banheira. Tomou seu banho rápido, vestiu o roupão e saiu do banheiro. Subiu as escadas e caminhou até os quartos de seu casal de filhos, dando beijos e mais beijos em cada um de seus pequenos. Ainda vestindo apenas seu roupão, ela abriu a porta de seu quarto, esperando encontrar o amor de sua vida adormecido na grande cama de casal. Para sua surpresa, o mesmo estava acordado, com a luz do abajur acesa. Ele tinha algo em suas mãos. Um pedaço pequeno de papel fotográfico que, ela percebeu, foi tirado da caixa lilás à sua frente. Aquela caixa. A caixa onde ela guardava suas melhores recordações de um tempo que não voltaria mais. A caixa cuja existência sempre foi um segredo para todos. Afinal, as recordações eram dela, apenas dela. Sempre foi muito egoísta, e isso era um problema. Examinou melhor a foto na mão de seu marido, ela se lembrava muito bem daquela foto. Era o retrato de uma paixão que dividira com suas amigas mais próximas do ensino médio e, a partir daí, da vida. Elas nem ao menos sabiam o nome daquele homem, mas eram fissuradas por ele. Descobriram seu meio de transporte, bairro e dias de aula. Apenas o nome, era o que lhes faltava. E então poderiam descobrir tantos detalhes quanto desejassem da vida daquele misterioso e lindo homem. Aquela foto, especificamente, havia sido tirada por uma delas em um dia qualquer, enquanto o observavam. Cada uma delas ganhou uma cópia daquela única lembrança material que tinham dele. Voltou à realidade e encarou o marido. Ele, estranhamente, sorria. Ela afastou a caixa, sentou-se no colo do marido e o beijou. Ele, curioso, afastou seu rosto por apenas um momento e perguntou:

-Posso, por acaso, saber o motivo de você ter uma foto minha quando adolescente?

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Regressiva

Você vai morrer. Calma, não estou dizendo que isso vai acontecer amanhã, muito menos que eu sei a data em que isso ocorrerá. Tudo o que estou dizendo é que, inevitavelmente, você vai morrer. E aí o que acontece com todas as palavras não ditas e com os planos ainda não colocados em prática? Eles somem, desaparecem e torturam mentes e sonhos alheios por muitos anos. Porque você não é o único que guarda segredos. Muitas pessoas também se seguram para não dizer ou não fazer algo a seu respeito, tenha certeza. Depois da sua morte, como você pretende resolver todos os problemas que ainda existem? Como é que você vai descobrir a cura para o câncer, para a AIDS, se estiver morto? Ou talvez algo menor. Como é que seu cadáver pretende levantar do túmulo e alimentar os peixes do lago que fica naquele parque na esquina da sua casa, peixes que você alimentava todos os dias de manhã? Você pretende voltar dos mortos só para ouvir a sua melhor amiga reclamar das notas, dos namorados, da vida? Você não pode, querido. E todos aqueles “eu te amo” que você tem tanto medo de dizer, sabe? Então, são eles que vão ficar vagando para sempre em algum espaço indefinido. Ninguém vai ouví-los, e talvez até duvidem que eles um dia pensaram em existir.

Você vai morrer, e não há nada que você possa fazer em relação a isso. Que tal então viver com toda a intensidade para, quando você for, poder descansar em paz?

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Folia

Ali, no meio de uma multidão calorosa e agitada, foi que ela o viu. Ele vestia roupas simples, porém inapropriadas para a folia que o cercava. Entendia-se facilmente que ele só queria escapar do amontoado de pessoas que o cercava, fugir da bagunça. Ela, como boa entendedora que era, não precisou de mais do que dois segundos para traçar o perfil daquele menino tão atraente. Era tranquilo, brincalhão, apesar de preferir paz à bagunça. Suas roupas demonstravam que era respeitador e charmoso. Naquele momento, ela, que estava vestida de policial, torceu com todas as forças para que aquele rapaz a fizesse de presidiária, que ele a guardasse para si. Nas frações de minuto em que seus olhares se cruzaram, ela desejou saber tudo sobre o menino. Queria saber se ele gostava de feijão, qual era sua cor favorita, se jogava cartas e que esporte praticava para manter aquele tão belo corpo. Ficou curiosa a ponto de ter vontade de descobrir quanto o menino calçava, o tipo de sorvete do qual mais gostava e se ele gostava de filmes de terror. Queria saber seus maiores interesses, seus mais profundos segredos e suas mais fúteis manias. Mas acabou. O menino conseguiu, finalmente, desviar das pessoas, entrou em seu carro e foi embora. Ele, provavelmente, nem reparou na bela mascarada que estava ali, embasbacada, encarando sua bela face. Mal sabia ele que ela o observava partir, certa de que sonharia com seu rosto por muito tempo depois daquele dia.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Gota

E então, ela estava chorando. Simples assim. Do nada, sem motivo grande ou aparente. Ela só sabia que deveria sair correndo dali. “Vou ao banheiro”. Sua desculpa típica. Ela não chorava por besteiras desde… Desde quando mesmo? Ela não se lembrava da última vez em que tinha chorado por besteiras. E aquilo era uma besteira, com certeza. Mas somada à turbulência que agitava sua vida naquele momento, aquilo criou uma tempestade. Tempestade da qual ela não poderia fugir. Ela esbarrou na porta que estava à sua frente e se trancou lá dentro. Sentia como se estivesse trancando os sentimentos do lado de fora. Era isso que ela fazia. Ela os trancava para evitar sentí-los. Ela sabia que eles existiam, sofria com eles, mas não demonstrava. Nem para si mesma. Mas aquele momento ela não aguentou. A gota d’água, ela poderia dizer. O menor de seus problemas foi aquele que destrancou as lágrimas. E ela chorou, chorou, chorou. Saiu pela porta e voltou ao encontro das amigas. “Prendi meu dedinho na porta”. Isso explicaria os olhos vermelhos, se alguém reparasse. “Quem se importa, mulher?”

Era verdade. Quem se importava?

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Unhas


  • Você gosta mesmo de mim, hein?
  • Han?
  • Suas unhas. Vermelho vibrante, recém-feitas. E você pintou pra vir me ver. Essa cor diz muito, sabe?
  • Claro que não, convencido!
  • Você teve uma entrevista de emprego ontem, ninguém pinta a unha desse tipo de vermelho pra ir a entrevistas de emprego. O que significa que você pintou entre ontem à noite e hoje, ou seja, pra me ver.
  • Você é muito espertinho, né? Pois fique sabendo que eu pintei dessa cor simplesmente porque era o único esmalte que já estava no meu quarto, e eu não queria ter o trabalho de ir buscar outro na maletinha do banheiro porque o esforço nem valeria a pena, e na verdade eu nem ia pintar de cor nenhuma mas a minha mãe ficou enchendo o saco dizendo que eu estava muito descuidada. E outra coisa, quem foi que morreu e te nomeou o sabichão sobre esmaltes e mani-
  • Relaxa! Tá bem, calma, já entendi.
  • Hunf, que bom.
  • Eu também gosto mesmo de você.