Ela é minha âncora. Não importa por onde
ou em que sentido, é sempre por ela que procuro para me manter firme à terra.
Ela me guia e me conduz como se soubesse exatamente o que fazer a todo momento,
e eu desconfio que ela saiba, de fato. Houve um tempo em que eu não tinha
certeza de nada além do sorriso dela ao meu lado todas as manhãs, e foi essa
certeza que me manteve acima da superfície enquanto tudo ao meu redor parecia
afundar em um oceano de desespero.
Lembro-me bem da primeira vez em que ela
salvou a minha vida – em muitos sentidos diferentes. Eu estava embriagado,
sentado ao balcão de um bar, xingando a tudo e a todos que me cercavam. Nem
mesmo bartender tinha mais paciência
comigo, àquela altura. Ele simplesmente revirava os olhos e enchia meu copo com
mais uma dose a cada vez que eu pedia – já tinha desistido de tentar me
convencer a parar antes de alcançar meu limite. Estava claro para qualquer um
que eu já o tinha alcançado – e ultrapassado – há muito tempo.
Ela estava passando pelo lado de fora do
estabelecimento quando eu a vi pela primeira vez. Os cabelos vermelhos
combinavam com o vestido de mangas compridas, quente demais para aquele dia de
verão. O sol batia no rosto dela, e só então eu percebi que já tinha
amanhecido. Eu já a tinha visto em algum lugar. Meus sonhos, cogitei, mas
acreditava ser mais do que isso. Percebi que estava certo quando ela retribuiu
meu olhar e, ao me reconhecer, resolveu entrar no bar. Fiquei consciente, de
repente, do meu estado. Eu não estava apresentável, provavelmente fedia a
cerveja e sem dúvidas tinha uma expressão de derrota no olhar.
- Pedro? – Ela se aproximou, e a voz
dela era o único som que não me fazia querer bater a cabeça na parede
repetidamente até o mundo ao meu redor se calar. – Achei que você estivesse com
os meninos... Eu estava indo para lá, para o aniversário do Gabriel. Você não
vem?
Eu não me lembrava do aniversário do
Gabriel. Arrisco até dizer que, naquele momento, eu não lembrava nem quem era o Gabriel, apesar de conhecê-lo,
basicamente, desde que nasci, e de ele ser um dos meus amigos mais próximos.
Mas o Gabriel entenderia se eu não aparecesse. Ele sabia como a minha vida
estava de cabeça para baixo. Com tudo de pernas para o ar. Eu estava no fundo
do poço, e se alguém tinha a obrigação de compreender isso, esse alguém era meu
melhor amigo.
- Eu não estou muito em condições de ir.
– Ri da minha própria desgraça, menos consciente do quanto eu a estaria
assustando. Ainda não lembrava o nome dela e nem de onde a conhecia, mas se ela
era amiga do Gabriel, isso já deveria bastar para mim.
- Eu percebi. – Ela ruborizou.
Eu achava que as pessoas só faziam isso em livros, filmes e histórias em
quadrinhos. Nunca tinha conhecido ninguém que ruborizasse na vida real. Quis
guardar aquela imagem na memória, e lembro que fiquei morrendo de medo do
álcool apagá-la. – Aliás, você está com uma cara péssima, mesmo. Mas eu sei o
que pode ajudar. Vem comigo.
Não sei o que a levou a
fazer aquilo, mas sou grato até hoje por ela ter feito. Em um ímpeto, ela pagou
minha conta (com uma gorjeta generosa ao bartender,
eu reparei, o que o fez agradecer bastante), me puxou pelo braço e me tirou do
bar escuro. A luz do sol machucou meus olhos e ela riu da careta que eu fiz.
- Pra onde você vai me
levar? – Consegui perguntar, mesmo atormentado pelo excesso de luz.
- Se eu te contar,
perde a graça.
Quando dei por mim, estávamos juntos em
um carro, ela ao volante e eu com a cabeça apoiada na janela do passageiro. Ela
já estava quase estacionando ao lado de um campo extenso de margaridas que eu
nunca nem soube que existia. As flores pareciam gritar pelo contraste do
amarelo com o azul do céu. Eu não via nada além da natureza, eu não sentia nada
além da paz que o lugar transmitia.
E, claro, eu a via.
Ela, em todo o esplendor de seu vestido vermelho. Ela me puxou pelo braço e me
guiou até uma clareira, onde sentamos e conversamos sobre a vida. Ela fez tudo
parecer mais fácil. Ela fez com que eu visse sentido, visse uma saída de todos
os meus problemas. Ela me apresentou a luz no fim do túnel. Uma luz
fluorescente...
Foi quando eu percebi que ela não
existia. Nada daquilo era real. Abri os olhos lentamente, a cabeça latejando
por causa do excesso de bebida. A luz fluorescente era uma lâmpada. Demorei a
entender o ambiente ao meu redor. Garrafas de bebida e um bartender impaciente. Tinha sido tudo um sonho. Minha âncora não
era real, e nada me impedia mais de me afogar no oceano de desespero que me
rodeava. Dei um último suspiro e deixei-me afundar.